“Leia os contos aos poucos, como se cada um deles fosse uma confissão.” e é com esta sugestão que a editora Mundaréu encerra o texto de apresentação de Não aceite caramelos de estranhos, livro de contos da chilena Andrea Jeftanovic.
A publicação faz parte da coleção ¡Nosotros!, dedicada exclusivamente à literatura latina com a intenção de refletir sobre seu povo, sua cultura, sua realidade social e política através das obras. Jeftanovic é uma das vozes potentes da literatura latino-americana contemporânea e faz uso notável de diferentes pontos de vista em situações extremas por aqui.
Nos onze contos que compõem o livro, Andrea Jeftanovic desconstrói sensos e noções morais, evidenciando todas as vísceras e contradições das relações familiares. Questões que se ramificam e ganham novos caminhos — a infância, a maternidade, a perversão, o trauma, o sexo, a solidão, o medo — atravessados pela falta de pudor e pelo amor.
Incesto, abuso, trauma, solidão e morte surgem entre as páginas de forma crua e direta e, por isso, incomoda. Cruza e brinca com nossos limites éticos e provoca sensações que não queremos sentir. Ainda mais quando ganha forma pelo amar, pelo afeto, desejo, prazer e ternura.
A prosa de Jeftanovic é voraz, trágica e lírica, sua naturalidade encanta e constrange. Sem meio termos, oscila entre repulsa e fascínio, e perdura o desconfortável. O infamiliar*.
*No texto da quarta capa, é citado unheimlich (alemão; tradução literal: repugnante), conceito desenvolvido por Freud, a partir do conto O homem da areia (E. T. A. Hoffmann), que transmite a ideia de quando “estamos diante de algo profundamente perturbador, todavia estranhamente familiar.” Em português, o termo corresponde ao “inquietante”, “estranho familiar” e “infamiliar”, como na nova edição do livro publicado pela editora Autêntica: O infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019).
A língua dentro da boca podia preservar o sabor que está a ponto de se extinguir. Esfregava os nós dos dedos até arrancar um pedaço de pele, que ficava girando feito uma biruta; a verdade é que eu não sangrava pelo lugar onde habia me ferido.
Primogênito; Andrea Jeftanovic
A todo momento, temos a impressão de que tudo que nos é narrado deveria permanecer oculto, mas vem à tona. Como se fosse algo proibido e no exato instante em que as palavras nos são dadas, deixamos de ser leitores e nos tornamos cúmplices.
A falsa inocência do título da coletânea é desmontada no primeiro conto e nos revela, logo de início, a profundidade entre temores e perturbações que leremos a seguir.
A epígrafe de “Árvore Genealógica”, primeiro conto, diz muito sobre sua leitura: “O que é proibido? A sociedade não proíbe nada além daquilo que ela mesma suscita.” (Claude Lévi-Strauss). O conto choca ao narrar uma relação incestuosa, a atração entre um pai e uma filha após a morte da esposa, carinho tenro e desejo obsessivo surgem a partir do luto. Não há juízo de valor e nem justificativas por parte dos personagens, qualquer julgamento fica por conta do leitor — assim que conseguir digerir e se recuperar do impacto de uma narrativa tão vertiginosa.
O conto “A Necessidade de ser Filho” traz como narrador um filho de pais adolescentes militantes contando sua história de vida e julgando seus progenitores que se ocupavam mais com a revolução do que com a sua criação. Em seus próprios desacertos, ele encerra um ciclo de traumas dando início a um novo, o que comprova que é mais simples apontar o erro do outro do que encarar o seu próprio.
“Não Aceite Caramelos de Estranhos”, conto que dá título ao livro, é uma constante preparação para o que está por vir. A repetição que apresenta a dor de uma ausência que nada pode preencher. A recomendação de uma mãe para nunca aceitar caramelos oferecidos por estranhos e o pesadelo inaceitável de uma filha desaparecida.
Eu avisei, não quebre a promessa que fizemos sem pronunciar. Decidimos isso naquele mesmo dia, olhando-nos de frente num par de escadas rolantes. Apalpo mordo acaricio volumes sedosos. Os corpos não são como os aposentos, nunca conservam as marcas evidentes. Ferimos você para sempre com a punhalada que tínhamos internamente.
Amanhã Estaremos nas Manchetes; Andrea Jeftanovic
Em “Miopia”, Andrea Jeftanovic atravessa com excelência a linha do assombro que não queremos ver. A miopia da personagem-narradora é usada como recurso de recusa da visão, não só de forma física, mas também no sentido figurado e inocente de não conseguir enxergar a realidade em uma situação escabrosa.
Por fim, “Até que se Apaguem as Estrelas” e o resultado de uma jornada de contos que começa trazendo inquietude e termina com afago, ainda que melancólico como demonstra em seu próprio título.
“(…) Interessante: mesmo conhecendo os mínimos detalhes de um corpo,
nunca, nunca possuímos o segredo de quem o habita.”
— Simona Vinci; trecho que compõe a epígrafe da coletânea
A pulsão de morte, sempre presente, caminha ao lado da satisfação, um regozijo sufocado, libertário e proibido em muitos paralelos e camadas. Incoerências cotidianas, situações-limite, espelhos quebrados, situações incomodativas e reflexões indesejadas.
Não aceite caramelos de estranhos desconforta e liberta à sua maneira. Uma leitura que deixa marcas, vale cada vírgula.
TÍTULO: Não Aceite Caramelos de Estranhos
SINOPSE: São contos ousados, onze socos no estômago, em que o ambiente familiar e as relações íntimas são palco de frustrações, temores e perturbações; de amores profundos e grandes esperanças. Jeftanovic confere a variadas personagens em situações extremas sua voz terna e inconvenientemente franca. Prêmio de Melhor Obra Literária de 2011 pelo Círculo de Críticos de Arte do Chile.
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