Será que estamos vivendo ou apenas cumprindo funções dentro de um protocolo social?
O ponto de partida deste questionamento veio com Apples, filme grego de 2020 e o primeiro longa-metragem de Christos Nikou — que já trabalhou como assistente de direção de Yorgos Lanthimos em Dente Canino. Cinema grego tudo para mim ❤.
Apples foi selecionado pro Festival de Veneza, exibido no Festival de Toronto e é uma pérola pouco comentada recheada de vazio existencial e vazio em confronto consigo mesmo. A premissa é bastante impactante: uma pandemia mundial que causa amnésia repentina. Sim, é isso mesmo que você leu.
Áris, interpretado pelo Áris Sérvetális, sai um dia de casa, pega um ônibus, chega no ponto final do trajeto e não se lembra mais de nada. Não lembra de onde é nem para onde vai, como as pessoas dizem no filme: ele esqueceu.
Os casos de esquecimento repentino estão aumentando, uma epidemia de amnésia súbita que acomete as pessoas e que até o momento não tem cura — pelo menos nenhum paciente recuperou a memória até então.
Sem documentos, Áris é levado ao hospital para ser amparado, como acontece com muitos na mesma situação, até que familiares procurem por essas pessoas e voltem pra casa. Mas ninguém procurou por Áris, ele não foi identificado. Recebe auxílio dos médicos, entre medicação e alguns testes ali para avaliar o progresso da memória, ou melhor, da falta dela.
Sem nenhum parente próximo, Áris entra num programa do governo chamado Nova Identidade, cujo intuito é reinserir os pacientes na sociedade. Recebem todo o suporte, como moradia, roupas e dinheiro para principais despesas. Além disso, ganham também uma câmera Polaroid e um gravador com lições diárias — tarefas que todos os integrantes do programa precisam cumprir e em seguida fotografar para registrar cada momento. Simbolicamente, todas as fotos são colocadas num álbum e marcar memórias. Aí aproveito para mais perguntas:
Somos aquilo que vivemos ou aquilo que lembramos que vivemos? O que significa, de fato, experienciar uma vivência?
As lições propostas pelo programa são aparentemente simples, por exemplo, andar de bicicleta. Algo que em teoria uma vez que se aprende, não se esquece mais. Entre outras coisas consideradas básicas numa sociedade, como fazer compras, caminhar, sair, conversar com outras pessoas, enfim. Acompanhamos Áris dia pós dia cumprindo suas tarefas e comendo suas maçãs, nós o conhecemos pouco a pouco e ele também se conhece e reconhece. E é a partir disso que o filme se desenvolve.
Adorei muito o filme, gosto da técnica, da linguagem e principalmente da abordagem que o cinema grego tem de transformar algo simples em complexo (os cara são desgraçado da cabeça, né, me identifico). Apples é o tipo de filme que vai passar de forma tranquila por você, mas planta uma sementinha atrás da sua cabeça que vai te fazer pensar sobre ele por um tempo. Uma obra que trabalha emoção por emoção, quando chega no final você meio que já sabe e sente o que vai acontecer e te torna cúmplice.
São várias as camadas dele, a conversa que o personagem tem com essa situação nem sempre é a mesma que você vai ter — e ainda tem o “bônus” do momento que vivemos de uma pandemia que nos limita há meses de várias formas. E é nessa limitação muitos vivemos dias iguais. Iguais e tão diferentes. Dias que se repetem e parecem que se tornam nada. Esquecendo o passado e repetindo o presente sem muita ideia do futuro.
Existe a solidão, o sentimento de perda, o esquecimento, a repetição, a própria indiferença humana, os ciclos automatizados. Apples é quase uma caixinha de sensações que a gente parece conseguir apalpar todas elas.
*** Os próximos quatro parágrafos contém spoilers
Chega um ponto que a gente desconfia, depois percebe e então se confirma que Àris não perdeu a memória. Ele não esqueceu de nada, mas queria, queria muito. Desde o começo do filme com os cortes de câmera sincronizados às batidas da cabeça dele contra a parede.
A dor da perda da esposa era maior do que tudo e ele quis fugir daquilo: da vida, das pessoas, das lembranças, dos sentimentos… Zerar. Tentar ser outra pessoa. Mas ele de imediato se traiu com as maçãs, no final vemos o retorno dele pra casa e as várias maçãs apodrecendo na ausência dele. A fruta de alguma forma era ali um vínculo, um retorno para a sua realidade, sua experiência, sua vida, sua esposa.
Ao lidar novamente com uma morte próxima — a do senhor enfermo do hospital —, foi onde ele percebeu que “esquecer” não faz parar de doer. Àris precisava viver, deixar-se sentir, tomar o seu tempo, a sua dor, cada um com seu processo e suas próprias maçãs. O cartaz é extremamente significativo :’)
Fim dos spoilers
Apples cresce a cada conversa, um filme que amplifica emoções, cada um com sua bagagem e particularidade somadas na conta do coletivo. Levanta muitas questões e se dispõe a poucas explicações, algo que eu amo.
Por enquanto, Apples não está disponível em nenhuma plataforma de streaming nacional.
TÍTULO: Apples
DIREÇÃO: Christos Nikou
SINOPSE: Em meio a uma pandemia mundial que causa amnésia repentina, Aris, um homem de meia-idade, se encontra em um programa de recuperação criado para ajudar pacientes a construir novas identidades.