Categoria: Desgraçamento Mental ||| por Adriana Cecchi
Deitei, eram 22h10. Peguei o livro no criado-mudo, o marcador não estava nem perto da metade. Abro, página 81:
“Florence entrou na sala de jantar:
– Boa noite – disse (…)”
Boa noite.
As letras começam a se distanciar, as palavras perdem o sentido.
Leio a frase, mas que frase? Não existe mais pontuação.
Preciso cumprir toda a lista de tarefas do trabalho. Metas. Prazos.
Hum, que vontade de comer aquele mesmo doce que comi ontem no almoço.
Não posso esquecer de comprar o presente de aniversário da Fulana, é semana que vem.
Que merda, esqueci de dar parabéns pro Ciclano ontem, não acredito.
Preciso arrumar meu armário. O quarto está uma bagunça.
Será que tem comida no pote pra gata comer?
Acho que vou assistir aquele último filme de terror que baixei.
Nossa, ainda não terminei aquele quebra-cabeça gigante.
Que dia é hoje mesmo?
Tenho que pagar a fatura do cartão de crédito.
O tempo tá passando rápido demais.
Paro pra pensar nos últimos acontecimentos.
Lembrei do dia em que te conheci.
As falas, os risos, as músicas. Os filmes, as pessoas, os dias.
As viagens, os passos, as estradas. Os abraços, as mãos, os beijos.
Lembrei de tudo.
Por que isso agora?
A vida em um filme que passa inteirinho na minha mente.
Fecho os olhos.
Balanço a cabeça como se isso embaralhasse as lembranças.
É, eu preciso dormir.
Droga de sono que não vem.
Vou comer alguma coisa, um chocolate quente é uma boa.
Depois volto, leio mais um pouco e…
23h55
Olho no canto do livro, página 81.
Adriana Cecchi
Quero escutar tuas coxas, queimar minha orelha nelas
Me aproximo e penso em te pedir um abraço
E então, com os olhos
Apenas com os olhos, entro nos teus olhos coloridos em verde
Lá embaixo, os pés. As meias atrapalham
Os pés se viram até ficarem nus e dançarem no ar
Esse mesmo ar que você respira
Que sai da tua boca e vem pra minha
Inspira
Quero deitar na tua fala quando você fala
Este medo que agora sinto
Vem das tuas curvas tão leves e tão brancas
Observo o consentimento e encosto minha mão
Apertas os lábios e, rijo, só penso na tua reação
A cada toque concluo
Já não posso mais estar perto sem querer te sentir
Por fora, por dentro
Te trago pra perto
Você se mexe bem pouquinho
E eu te assisto
De leve
Devagarinho
Adriana Cecchi
Coluna de autores convidados, texto por Pedro Catarino
Como é de costume e corriqueiro, meu fone de ouvido parou de funcionar. Ela me olhou e disse: “Vamos comprar um fone bem legal para você!”. Eu concordei. O tempo passou e, ainda que sobre as insistências dela, procrastinei.
Com pressa, numa tarde de sábado, entrei numa loja qualquer e pedi o primeiro fone que vi pela frente. Alguns trocados e “problema resolvido”. “Esse fone não vai prestar…” ela disse. Assim que o liguei percebi que o lado esquerdo pipocava e o direito não tinha um som limpo.
“Pedro, eu pago, vamos comprar um BOM fone” ela me disse. Como de costume, despreocupado, respondi “Imagina, esse aqui ainda tá funcionando”.
“Meu amor, precisamos conversar” ela me disse. Como de costume, eu respondi “A gente se ama, vai ficar tudo bem!”. O tempo passou e os problemas ficaram, “Não tá tudo bem, senta aqui, vamos resolver…” ela pediu. “Preta, eu te amo. Vai tudo passar, é só a gente ficar junto…”.
O tempo passou, meu fone quebrou, e eu não ouço música já tem um bom tempo. O tempo passou, ela foi embora, e eu não ouço meu coração já tem um bom tempo. Deveria ter aceitado o fone, deveria ter aceitado a conversa. Deveria.
Pedro Catarino