Categoria: Desgraçamento Mental ||| por Adriana Cecchi
Coluna de autores convidados, texto por Marcela Oka
E aí você se pega com aquele sentimento… Saudade. E uma saudade inesperada, porque você nem tem tanta certeza do que você tem saudade.
Porque até então você tinha um padrão estabelecido que te deixava metodicamente confortável. Um padrão onde o que tinha acabado, ficava pra trás. Sem mágoas ou raiva, porque a data de validade desses sentimentos já tinha expirado. Então simplesmente ficava pra trás, guardado numa caixa dentro do depósito, como aquelas coisas que a gente não tem onde colocar quando muda pra casa nova, sabe?
A caixa estava no depósito, e eu estava de mudança, então fui até lá pra carregar as caixas pro carro. Deixo uma delas cair e então escapa uma lembrança, daquelas que não poderia ter escapado. Eu abaixo, tento colocar de volta na caixa, mas tarde demais: ela já tava impregnada em mim. Como eu me deixei fugir do meu próprio padrão? Você, você me fez fugir. Você apareceu outro dia querendo me entregar uma outra lembrança que também impregnou em você, mas você não podia lidar com ela, então você veio e devolveu pra mim. Eu guardei na caixa, porque afinal o que acaba fica pra trás…
Mas fato é que eu não me mudei. Fato é que eu levei a caixa pra cima e abri. Fato é que você me deixou com o que você não soube lidar e continua sem querer saber. ‘Melhor deixar lá, no depósito’, você diz. Eu já tomei banho no chuveiro, no mar, na cachoeira, na cândida, mas não sai. Não volta mais pra caixa.
Que você conseguiu arrancar de você e enfiar de volta na caixa, só pra não precisar lembrar; que você consegue não falar sobre isso e fingir que ‘estamos indo bem’, eu aceitei. Só queria a receita pra conseguir também. Você foi e acabou esquecendo de me passar.
Marcela Oka
Essa vida é curta
Curta de tempo, curta de distância
Bem curta
Curta, curtinha, encurtada
Passa num sopro
Meio fio
Para que eu vou descer do carro
Quero ir a pé
Andar na chuva
Molhar os sapatos
Sentir o vento penetrar na minha alma
Procurar por corações de ouro como o Neil Young canta
E bater com a cara no muro quando pensar que encontrei algum
A incerteza é que me move, que me tira do lugar
Incógnita, inconstância, indiferença, incoerência
Não me espera pra jantar
Eu posso demorar
Aproveitar o tempo que ainda me resta
Porque sabe
Essa vida é muito curta
Adriana Cecchi
Ela está lá para todos, mas só usa quem quiser.
Uma realidade paralela.
O mundo para de girar, a cabeça fica distante.
Passa por ruas, avenidas, casas, grandes jardins, prédios, comércios, carros, motos, praças, pontes, muros e concretos. Passa por casais de mãos dadas, crianças de uniforme, moradores de rua, homens de gravata e mulheres de vestido. Passa por semáforo, lixo, gente e bicho.
Quadro em movimento e tempo congelado, paradoxalmente no mesmo vidro.
Tudo fica em suspenso, ao menos por um momento.
Agonias, saudades, angústias, dores, aflições, dúvidas, amores não correspondidos, crises existenciais, arrependimentos, decisões importantes, problemas familiares, urgências, mágoas, preocupações com o trabalho, desejos, julgamentos, medos e anseios.
Qualquer coisa pode ser resolvida ou amenizada enquanto se olha através de uma janela de ônibus.
Os sentimentos passam na mesma velocidade que a paisagem de fora.
As lembranças se desfazem como poeira no asfalto.
A raiva é abafada pelo som do motor.
A impressão de que tudo volta pro lugar a cada esquina, a cada curva, a cada parada brusca.
Janela conselheira, divã de pobre, confessionário público.
A preço fixo, cobra pouco e diz muito, por isso sempre está cheia de clientes.
Adriana Cecchi