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18mar

Em negrito, referências a The Doors

Você quer falar sobre cotidiano? Eu sou a melhor pessoa pra falar sobre isso. Não que eu leve uma vida muito regrada, talvez sim, não sei. Devo assumir que gosto de ter certos horários e certas rotinas, mas não me parece grave, parece? Sobre o que eu estava falando mesmo? Ah, sim, cotidiano. As pessoas costumam dizer que me perco nos meus próprios assuntos, nunca tenho uma linha de raciocínio, me chamam de estranho, eu os chamo de lerdos. Uma ova. Todos são estranhos, pessoas são estranhas. Voltando ao cotidiano, todo dia tomo meu café 7 horas da manhã, pontualmente às 7h00, acordo exatos 45 minutos antes disso, se você não for bom com contas, me levanto todos os dias às 6h15. Parece cedo para alguns e tarde para outros, o tempo é relativo para cada um, né? Mas o meu café é sempre preto, preto bem preto. Gosto das minhas roupas igual gosto do meu café: preto. Mamãe quando viva – deus a tenha – dizia que eu parecia um corvo gigante por só usar preto, eu ria, afinal, adoro corvos. Corvos, aliás, são mais inteligentes do que macacos e golfinhos, esses bichos me fascinam, eles podem imitar a voz humana! Ainda sobre o meu café, gosto dele quente, quente pelando porque é assim que tem que ser. Quente pelando é o banho que tomo também antes do meu café preto bem preto. Eu nunca amei alguém, não tanto quanto amei àquela moça linda que se foi há muito, todo o seu amor se foi. Não costumo ler notícias pela manhã e em nenhum outro momento do dia, acho que a minha cabeça não aguentaria, sabe? São muitas informações para processar ao mesmo tempo, cores para enxergar, vozes para ouvir e sentimentos para lamentar. Ler jornal enquanto toma café com os pés pra cima e cigarro na boca é coisa de filme, ninguém mais tem tempo pra isso, além do que, as notícias se repetem, dia após dia e quem se importa? As coisas se repetem, tanto faz, bem-vindo ao cotidiano. Saio de casa depois do café, não me despeço de ninguém – a não ser que eu comece a falar com as paredes novamente. Dou passos apertados, sempre está chovendo, destruo guarda-chuvas, molho os sapatos, as meias, eu odeio ficar com os pés molhados. Atravesso para o outro lado. Entro em elevadores e tenho pânico de elevadores. Dizem que o nome disso é claustrofobia, as pessoas se sentem bem quando conseguem dar nomes às coisas. Nomeiam a vida, o amor, a dor, o desejo de matar e de morrer. Dá pra entender uma coisa dessas? Com o que temos que lidar todo santo dia, eu disse, todo-santo-dia. Querem ter explicação pra tudo, “remédios e palavras para qualquer situação, compre aqui”, pro inferno todos! Isso sim é insanidade, não o que àquela psiquiatra de lábios carnudos e vermelhos me disse que era. Insanidade. Insano. Insanas. Tenho a teoria de que quando repetimos várias vezes a mesma palavra ela perde o sentido. Insanidade. Cotidiano. Dias estranhos nos encontram. Meu café é quente e preto, chove todo dia, o relógio grita, as notícias são as mesmas. O fim. Você perdeu. Você está perdido, garoto. Engraçado eu ter consigo pensar nisso tudo nos últimos dois segundos. Desde que eu pulei daquele prédio, não vejo mais nada.

Adriana Cecchi

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18ago

Meus dias nascem aos gritos
em horários diferentemente desconhecidos.
Um estalar de xícaras,
soluções, confissões
e noções argumentativas sobre a vida.
Uma cama por fazer
ao som de notícias espalhafatosas.
De fundo, um violino entristecido.
Roseiras destruídas por mãos finas,
mas não tão delicadas.
No meu modo,
sobreviver com café amargo,
cigarro e textos proibidos.
Tive pra mim a teoria sobre olhos fechados
desgraçados pela explosão de luzes
ao abrir qualquer janela
entre raios e cruzes.
Em cima da mesa
o jornal do avesso, meias escuras
e ligações perdidas.
Desço a rua para comprar pastilhas,
caminho sobre os restos de uma fábrica
de caráter duvidoso.
Num vão de porta,
sou atirada contra sacos de lixo.
Um homem de cavanhaque branco
e terno bem costurado
puxa uma faca brilhante
acertando em cheio
o meu coração cansado.

Adriana Cecchi

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21maio

Coluna de autores convidados, texto por Kaio Shimansky

não me sobra nada além de pensar e pensar arranca pedaços da minha alma.
acendo um cigarro e, entre os meus demônios dançando na fumaça,
lembro-me dos inúmeros acidentes que já mataram a minha calma,
penso em perdas, dores, sofrimentos e esperanças malogradas.

dou mais um trago e revivo todas essas coisas inesperadas,
pessoas queridas, amores esquecidos, amigos e seus malditos casamentos,
orgulhos feridos, parentes aborrecidos, meus pais e seus tormentos.
tudo pesa, cansa e resulta em maiores tragédias perpetradas.

vivemos sós e nos arrastamos por uma vida de sofrimento.
o meu maço de cigarros faz questão de mostrá-la: a triste morte.
seja ele o carrasco, ou algum dos outros, é questão de sorte.
pelo menos este eu consigo ver queimar, e gosto do sentimento.

então lembrem-se, meus irmãos de pequenas almas acuadas:
de todos os possíveis exemplos, o que te executa é a vida.
e ela ainda não me matou,
até o momento.

Kaio Shimansky

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