Canção de Ninar já chamava a minha atenção e sabia que a hora dele iria chegar e chegou: BAQUE! Escrito pela Leila Slimani, o livro foi vencedor do Prêmio Goncourt em 2016, consagrando Leila como a primeira autora de origem marroquina a vencer esse prêmio.
Publicado no Brasil pela Editora Planeta (selo Tusquets), a edição faz parte do Programa de Apoio à Publicação 2018 do Instituto Francês do Brasil e conta com tradução de Sandra M. Stroparo.
Inspirado em um caso real ocorrido em Nova York (2012) envolvendo a babá Yoselyn Ortega e uma família. Matéria completa (em francês). O romance ganhou uma adaptação cinematográfica em 2019: Chanson Douce (título original) foi dirigido por Lucie Borleteau.
Canção de Ninar é um livro que começa pelo seu fim. Desconstrói a ideia de haver um possível mistério e teorias mirabolantes. Ele não cria a expectativa da tragédia, porque ele já é uma tragédia anunciada com os dois pés enfiados no caos. Uma mãe volta pra casa e se vê num cenário de horror: seus filhos mortos e a babá que tentou tirar a própria vida depois do que fez.
“O bebê está morto”
Leila cria o maior impacto possível nas três primeiras páginas que compõem o primeiro capítulo. Você não espera que a história comece com crianças assassinadas sem nenhuma explicação, uma atrocidade cometida por alguém cujo trabalho seria justamente oferecer cuidado.
“O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbugalhados, parecia procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam perfurados e a cabeça tinha batido com violência contra a cômoda azul.”
Primeiro parágrafo de Canção de Ninar (e também o mais pesado)
Sabemos o desfecho e é justamente isso que motiva a leitura e traz inquietude máxima para saber a jornada percorrida até esse lugar. Qual o caminho percorrido até esse ponto? Quem é essa babá? Quem são esses pais? Quem são essas crianças? Por que ela fez isso? Qual o objetivo da escritora nessa inversão?
Após o nascimento de seu segundo filho, Myriam decide retornar ao mercado de trabalho. Ela não se sente mais como um indivíduo, quer ter sua liberdade e sua autonomia de volta, que para ela foram sugadas com a vida de dona de casa e maternidade. Paul, seu marido e pai das crianças, fica relutante no início, mas aceita a vontade da esposa. E aqui se abre um primeiro ponto de discussão sobre maternidade e a “função da mulher” na sociedade. Porque, no geral, nunca é uma questão para o homem ter que abrir mão do trabalho ou abandonar algo para cuidar dos filhos, da casa, enfim.
Apesar da relutância de Paul, o casal inicia uma seleção em busca da babá perfeita. Eles querem uma babá branca, que não seja imigrante e que não tenha filhos. Algo que entra em outro ponto de crítica importante já que Myriam tem origem africana e é uma imigrante na França, além de também ser uma mãe tentando retornar ao mercado de trabalho.
Pois que eles encontram Louise! Uma francesa de aparência serena, mulher na faixa dos 40 anos com ótima referência anterior; muito educada, dedicada, atenciosa, sempre arrumada — características e elogios constantemente evidenciados na narrativa.
Chegou e se deu bem logo de cara com as duas crianças: a menina Mila e o caçula Adam. Uma presença que encantou a todos, Louise é contratada para ser babá e cuidar das crianças, mas vai cuidar de tudo: da casa, da comida, das pessoas… Ela transforma o ambiente, tudo fica melhor. Vai assumir todas essas funções por buscar a perfeição e a aceitação da família.
À noite, no conforto de lençóis frescos, o casal ri, incrédulo, dessa nova vida que levam. Eles têm a sensação de ter encontrado uma pérola rara, de terem sido abençoados. Claro, o salário de Louise pesa no orçamento familiar, mas Paul não se queixa mais. Em algumas semanas a presença de Louise se tornou indispensável.
Se constrói uma relação de dependência mútua, tanto da família que sente e verbaliza não saber mais como viver sem a presença da Louise, quanto da Louise que precisa desse emprego, outra ramificação: tanto pelo salário, quanto pelo fato de que a vida dela gira em torno desse trabalho.
— Ela é tão perfeita, tão delicada, que às vezes sinto um tipo de desgosto profundo — confessou um dia para Myriam.
Um grande apego de todos os lados. Por um lado, o casal que ama falar para os amigos que tem a babá perfeita, que não sabem como a encontraram, que foi um presente. Do outro lado, Louise que inicialmente se apega às crianças, e esse apego se alastra e a consome como se tudo aquilo fosse seu. Em alguns momentos ela demonstra um senso de dominação, alguns indícios de agressividade na forma como às vezes brinca com as crianças, educa, toma conta ou se impõe. Mas são detalhes bem sutis, não é nada que possa definir uma condição. Leila coloca traços.
Não há um aprofundamento psicológico que determine os fatos ou seja uma possível explicação do porquê uma mulher mataria duas crianças.
O livro como um todo é uma subversão do que se espera. Você espera um thriller? Não vai ser. Você espera uma explicação dos porquês? Não vai ter. Você espera uma imagem que retrate algo que seja estereotipado para responder a sua expectativa da narrativa? Não vai encontrar. Canção de Ninar rompe essa imagem falsamente detectada de “eu sabia que ela não era normal” ou qualquer outro argumento ligado à aparência/comportamento que pudesse ser usado como justificativa de uma ação. Quebra de expectativa e quebra de estereótipo.
Que paralelamente se alinha com outro ponto das relações entre as personagens da história, que são — ironicamente — carregadas de estereótipos e de julgamentos umas com as outras. A sogra da Myriam acha errado ela querer voltar a trabalhar porque uma mãe deveria ser dona de casa e se contentar com o lar. A própria Myriam com seus critérios conscientemente hipócritas de contratação. Louise e seu impulso de dominação e de ser possuída pelo trabalho, por cuidar de outras casas e outras crianças sendo que teve uma relação bastante complicada com a própria filha.
E a única coisa que de fato acontece, que se concretiza, é justamente o que não estava exposto. O estereótipo que nunca havia sido cogitado, que jamais poderia ter sido imaginado.
Pela primeira vez, pensa na velhice. No corpo que começa a sair dos trilhos, nos gestos que fazem doer até dentro dos ossos. Nos gastos médicos que aumentam. E depois a angústia de uma velhice mórbida, deitada, doente, no apartamento com os vidros sujos. Isso virou uma obsessão.
Outro destaque é a obsessão, a perda do limite. Daquilo que entra, adentra, invade, preenche, consome e domina desmedidamente. A compulsão de ser e servir, de existir para isso, alemjar ser indispensável. Algo que entra em conflito direto com outra questão: a diferença de classe. Tão dedicada, tão trabalhadora, ela é “da família”. Se faz necessária, mas a verdade é que se for preciso, se alguém cansar, se der na telha, qualquer outra pessoa pode ser contratada no lugar. Linha tênue na relação de patrão e empregado.
Tensões afloram e crescem de todos os lados até chegar no ápice que já conhecemos. Pequenos detalhes que se tornam grandiosos e irreversíveis.
Complexidade humana, camadas da mente, pertencimento, não-pertencimento, consciência social, consciência de classe, hipocrisia, obsessão, papel da mulher, maternidade compulsória, preconceito, xenofobia, subemprego e imigração. Leila Slimani não se aprofunda em nenhum desses assuntos, não tem intenção de fazer uma denúncia ou criar justificativas, vai apenas contar uma história e distribuir cartas na mesa.
Muitas sensações e sentimentos, mas em suma não é um livro para emocionar, é uma história para perturbar. Gostando dele ou não, você vai querer falar sobre.
TÍTULO: Canção de Ninar
SINOPSE: Apesar da relutância do marido, Myriam, mãe de duas crianças pequenas, decide voltar a trabalhar em um escritório de advocacia. O casal inicia uma seleção rigorosa em busca da babá perfeita e fica encantado ao encontrar Louise: discreta, educada e dedicada, ela se dá bem com as crianças, mantém a casa limpa e não reclama quando precisa ficar até tarde. Aos poucos, a relação de dependência mútua entre a família e Louise dá origem a pequenas frustrações.
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