Sobre | Projetos | Contato




03nov

Uma obra digna da zona de desconforto: o clássico perturbador da literatura japonesa Audição, escrito por Ryū Murakami.

Ryū Murakami é um premiado romancista, contista, ensaísta e cineasta japonês. Considerado o mestre do psycho thriller no Japão, suas obras abordam a natureza humana a partir de temas como desilusão, uso de drogas e violência num sombrio Japão pós-guerra.

Audição foi publicado originalmente em 1997 e ganhou o mundo com a adaptação em 99 pelo cineasta Takashi Miike. Agora tem no Brasil! Ganhou edição nacional publicada pela DarkSide Books e conta com tradução de Lica Hashimoto e Juliana Kobayashi.

Começa como um desgraçamento e termina como uma desgraceira

Desde a morte de sua esposa, há sete anos, Aoyama não teve nenhum outro relacionamento. Shiguehiko, seu filho adolescente, fala com o pai sobre isso, diz que ele está ficando velho e que poderia encontrar um novo amor para se casar de novo.

Yoshikawa, um dos seus melhores amigos , é produtor de TV e propõe uma ideia um tanto quanto inadequada: realizar testes para um filme falso (um filme que não existe nem vai existir) e entre as candidatas pra essa audição quem sabe encontrar uma nova esposa para o Ayoama.

A ideia consite em, basicamente, criar um catálogo de mulheres. Uma movimentação para essas inscrições, contendo fichas de cada uma das candidatas com fotos, altura, medidas, redações, características, gostos, hobbies e aptidões; tudo para facilitar as seleções e audições presenciais com entrevistas.

Os diálogos entre os dois amigos a respeito dessas avaliações são repletos de machismo e misoginia, propositalmente inseridos pelo autor Ryu Murakami pois seus personagens são homens com atitudes misóginas e que muito provavelmente não compreendem o peso que isso tem. Vale dizer que Audição é ambientado em Tóquio, na década de 1990 — existe o aspecto cultural do Japão, ainda mais na época retratada.

Entre muitos julgamentos, tópicos de checagem, preferências físicas e morais, uma das candidatas chama muito a atenção de Ayoama desde a ficha de inscrição, era como se houvesse uma fascinação imediata.

Continue lendo

Compartilhe:
29set

“a Náusea sou eu”

O acaso, o absurdo e o vazio. A Náusea é o primeiro romance de Jean-Paul Sartre, considerado pela crítica e pelo próprio autor o mais perfeito de sua sempre inquieta e inovadora carreira. 

Publicado pela primeira vez em 1938, A Náusea foi um marco na ficção existencialista e é até hoje um dos textos mais famosos da literatura francesa do século XX.

A Náusea foi a primeira leitura conjunta do Clube dos Caóticos! Para apoiadores do Catarse temos conteúdos exclusivos: grupo de discussão no Telegram; + chat diário; + encontros marcados via chat; + conteúdo semanal extra com meus registros/análises da obra em formato de áudio ou texto. Contribua com o caos!


Assista ao conteúdo no YouTube: A NÁUSEA (Jean-Paul Sartre): ANGÚSTIA e GRATUIDADE EXISTENCIAL


TRECHOS E FRASES DE A NÁUSEA

“Na parede há um buraco branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela. Aí está. A coisa cinzenta acaba de aparecer no espelho. Aproximo-me e olho para ela: já não posso mais ir. É um reflexo de meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos, fico a contemplá-lo. Não entendo nada desse rosto. Os dos outros têm um sentido. O meu, não.” p.32

“Começo a me reanimar, a me sentir feliz. Ainda não é nada de extraordinário, é uma pequena felicidade de Náusea: ela se espalha no fundo da poça viscosa, no fundo de nosso tempo – o tempo dos suspensórios cor de malva e dos bancos quebrados -, é feita de instantes amplos e frouxos, que se alastram pelas bordas como uma mancha de azeite. Mal nasceu e já parece velha, tenho a impressão de conhecê-la há vinte anos.” p.37

“O que acaba de ocorrer é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se elevou no silêncio, senti meu corpo se enrijecer e a Náusea se dissipou.” p.38

Vejo o futuro. Está ali, pousado na rua, um nadinha mais pálido do que o presente. Que necessidade tem de se realizar? Que vantagem lhe trará isso?… Já me perdi: será que vejo seus gestos ou os prevejo? Já não distingo o presente do futuro e no entanto isso tem uma duração, realiza-se pouco a pouco.” p.47

“É isso o tempo, o tempo inteiramente nu, que vem lentamente à existência, que se faz esperar e, quando chega, nos sentimos enfastiados porque percebemos que já estava ali havia muito tempo.” p.47

“Mas já não vejo nada mais: por mais que vasculhe meu passado, só extraio dele fragmentos de imagens e não sei muito bem o que representam, nem se são recordações ou ficções.” p.49

“(…) construo sonhos a partir de palavras, isso é tudo.” p.49

“Nunca como hoje tive o sentimento tão forte de ser alguém sem dimensões secretas, limitado a meu corpo, aos pensamentos superficiais que sobem dele como bolhas. Construo minhas lembranças com meu presente. Sou repelido para o presente, abandonado nele. Tento em vão ir ter com o passado: não posso fugir de mim mesmo.” p.50

“Alguma coisa começa para terminar: a aventura não se deixa prolongar; só tem sentido através de sua morte. Para essa morte, que será talvez também a minha, sou arrastado inexoravelmente. Cada instante só surge para trazer os que se lhe seguem. Apego-me a cada instante com todo o meu coração: sei que é único; insubstituível – e no entanto não faria um gesto para impedi-lo de se aniquilar.” p.54

“Viver é isso. Mas quando se narra a vida, tudo muda; simplesmente é uma mudança que ninguém nota: a prova é que se fala de histórias verdadeiras. Como se fosse possível haver histórias verdadeiras; os acontecimentos ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso.” p.56

“Quis que os momentos de minha vida tivessem uma sequência e uma ordem como os de uma vida que recordamos. O mesmo, ou quase, que tentar capturar o tempo.” p.57

“O domingo que termina deixou-lhes um gosto de cinzas e seu pensamento se volta para a segunda-feira. Mas para mim não existem segunda-feira nem domingo: existem dias que se atropelam desordenadamente e, além disso, lampejos como esse.” p.71

Continue lendo

Compartilhe:
09maio

Canção de Ninar já chamava a minha atenção e sabia que a hora dele iria chegar e chegou: BAQUE! Escrito pela Leila Slimani, o livro foi vencedor do Prêmio Goncourt em 2016, consagrando Leila como a primeira autora de origem marroquina a vencer esse prêmio.

Publicado no Brasil pela Editora Planeta (selo Tusquets), a edição faz parte do Programa de Apoio à Publicação 2018 do Instituto Francês do Brasil e conta com tradução de Sandra M. Stroparo.

Inspirado em um caso real ocorrido em Nova York (2012) envolvendo a babá Yoselyn Ortega e uma família. Matéria completa (em francês). O romance ganhou uma adaptação cinematográfica em 2019: Chanson Douce (título original) foi dirigido por Lucie Borleteau.

Canção de Ninar é um livro que começa pelo seu fim. Desconstrói a ideia de haver um possível mistério e teorias mirabolantes. Ele não cria a expectativa da tragédia, porque ele já é uma tragédia anunciada com os dois pés enfiados no caos. Uma mãe volta pra casa e se vê num cenário de horror: seus filhos mortos e a babá que tentou tirar a própria vida depois do que fez.

“O bebê está morto”

Leila cria o maior impacto possível nas três primeiras páginas que compõem o primeiro capítulo. Você não espera que a história comece com crianças assassinadas sem nenhuma explicação, uma atrocidade cometida por alguém cujo trabalho seria justamente oferecer cuidado.

“O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbugalhados, parecia procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam perfurados e a cabeça tinha batido com violência contra a cômoda azul.”

Primeiro parágrafo de Canção de Ninar (e também o mais pesado)

Sabemos o desfecho e é justamente isso que motiva a leitura e traz inquietude máxima para saber a jornada percorrida até esse lugar. Qual o caminho percorrido até esse ponto? Quem é essa babá? Quem são esses pais? Quem são essas crianças? Por que ela fez isso? Qual o objetivo da escritora nessa inversão? 

Após o nascimento de seu segundo filho, Myriam decide retornar ao mercado de trabalho. Ela não se sente mais como um indivíduo, quer ter sua liberdade e sua autonomia de volta, que para ela foram sugadas com a vida de dona de casa e maternidade. Paul, seu marido e pai das crianças, fica relutante no início, mas aceita a vontade da esposa. E aqui se abre um primeiro ponto de discussão sobre maternidade e a “função da mulher” na sociedade. Porque, no geral, nunca é uma questão para o homem ter que abrir mão do trabalho ou abandonar algo para cuidar dos filhos, da casa, enfim.

Apesar da relutância de Paul, o casal inicia uma seleção em busca da babá perfeita. Eles querem uma babá branca, que não seja imigrante e que não tenha filhos. Algo que entra em outro ponto de crítica importante já que Myriam tem origem africana e é uma imigrante na França, além de também ser uma mãe tentando retornar ao mercado de trabalho.

Continue lendo

Compartilhe: