Categoria: Desgraçamento Mental ||| por Adriana Cecchi
Canção de Ninar já chamava a minha atenção e sabia que a hora dele iria chegar e chegou: BAQUE! Escrito pela Leila Slimani, o livro foi vencedor do Prêmio Goncourt em 2016, consagrando Leila como a primeira autora de origem marroquina a vencer esse prêmio.
Publicado no Brasil pela Editora Planeta (selo Tusquets), a edição faz parte do Programa de Apoio à Publicação 2018 do Instituto Francês do Brasil e conta com tradução de Sandra M. Stroparo.
Inspirado em um caso real ocorrido em Nova York (2012) envolvendo a babá Yoselyn Ortega e uma família. Matéria completa (em francês). O romance ganhou uma adaptação cinematográfica em 2019: Chanson Douce (título original) foi dirigido por Lucie Borleteau.
Canção de Ninar é um livro que começa pelo seu fim. Desconstrói a ideia de haver um possível mistério e teorias mirabolantes. Ele não cria a expectativa da tragédia, porque ele já é uma tragédia anunciada com os dois pés enfiados no caos. Uma mãe volta pra casa e se vê num cenário de horror: seus filhos mortos e a babá que tentou tirar a própria vida depois do que fez.
“O bebê está morto”
Leila cria o maior impacto possível nas três primeiras páginas que compõem o primeiro capítulo. Você não espera que a história comece com crianças assassinadas sem nenhuma explicação, uma atrocidade cometida por alguém cujo trabalho seria justamente oferecer cuidado.
“O bebê está morto. Bastaram alguns segundos. O médico assegurou que ele não tinha sofrido. Estenderam-no em uma capa cinza e fecharam o zíper sobre o corpo desarticulado que boiava em meio aos brinquedos. A menina, por sua vez, ainda estava viva quando o socorro chegou. Resistiu como uma fera. Encontraram marcas de luta, pedaços de pele sob as unhas molinhas. Na ambulância que a transportava ao hospital ela estava agitada, tomada por convulsões. Com os olhos esbugalhados, parecia procurar o ar. Sua garganta estava cheia de sangue. Os pulmões estavam perfurados e a cabeça tinha batido com violência contra a cômoda azul.”
Primeiro parágrafo de Canção de Ninar (e também o mais pesado)
Sabemos o desfecho e é justamente isso que motiva a leitura e traz inquietude máxima para saber a jornada percorrida até esse lugar. Qual o caminho percorrido até esse ponto? Quem é essa babá? Quem são esses pais? Quem são essas crianças? Por que ela fez isso? Qual o objetivo da escritora nessa inversão?
Após o nascimento de seu segundo filho, Myriam decide retornar ao mercado de trabalho. Ela não se sente mais como um indivíduo, quer ter sua liberdade e sua autonomia de volta, que para ela foram sugadas com a vida de dona de casa e maternidade. Paul, seu marido e pai das crianças, fica relutante no início, mas aceita a vontade da esposa. E aqui se abre um primeiro ponto de discussão sobre maternidade e a “função da mulher” na sociedade. Porque, no geral, nunca é uma questão para o homem ter que abrir mão do trabalho ou abandonar algo para cuidar dos filhos, da casa, enfim.
Apesar da relutância de Paul, o casal inicia uma seleção em busca da babá perfeita. Eles querem uma babá branca, que não seja imigrante e que não tenha filhos. Algo que entra em outro ponto de crítica importante já que Myriam tem origem africana e é uma imigrante na França, além de também ser uma mãe tentando retornar ao mercado de trabalho.
Um conto bem escrito é aquela porrada que você não sabe da onde veio nem pra onde foi.
Contos que são narrativas mais curtas com poucos personagens, espaço e cenário limitados, recorte temporal reduzido, mas que te envolvem e te arremessam num clímax.
A intenção deste índice é manter-se atualizado com a playlist CONTOS MAIS PERTURBADORES DA LITERATURA no YouTube e ser um despertar para a literatura & desgraçamento mental.
CONTOS MAIS PERTURBADORES DA LITERATURA
▪ O Barril de Amontillado (1846); Edgar Allan Poe
↪ ler conto | edições para comprar
▪ A Loteria (1948); Shirley Jackson
↪ ler conto | edições para comprar
▪ Não Tenho Boca e Preciso Gritar (1967); Harlan Ellison
↪ ler conto | sem edição disponível em português
▪ Demônios (1893); Aluísio Azevedo
↪ ler conto | edições para comprar
▪ Tripas (2005); Chuck Palahniuk
↪ ler conto | edições para comprar
▪ Perdido Numa Pirâmide ou A Maldição da Múmia (1869); Louisa May Alcott
↪ ler conto (kindle unlimited) | edições para comprar
▪ A Mão do Macaco (1902); W. W. Jacobs
↪ ler conto | edições para comprar
▪ O Olho sem Pálpebra (1832); Philarète Chasles
↪ ler conto | edições para comprar
“Leia os contos aos poucos, como se cada um deles fosse uma confissão.” e é com esta sugestão que a editora Mundaréu encerra o texto de apresentação de Não aceite caramelos de estranhos, livro de contos da chilena Andrea Jeftanovic.
A publicação faz parte da coleção ¡Nosotros!, dedicada exclusivamente à literatura latina com a intenção de refletir sobre seu povo, sua cultura, sua realidade social e política através das obras. Jeftanovic é uma das vozes potentes da literatura latino-americana contemporânea e faz uso notável de diferentes pontos de vista em situações extremas por aqui.
Nos onze contos que compõem o livro, Andrea Jeftanovic desconstrói sensos e noções morais, evidenciando todas as vísceras e contradições das relações familiares. Questões que se ramificam e ganham novos caminhos — a infância, a maternidade, a perversão, o trauma, o sexo, a solidão, o medo — atravessados pela falta de pudor e pelo amor.
Incesto, abuso, trauma, solidão e morte surgem entre as páginas de forma crua e direta e, por isso, incomoda. Cruza e brinca com nossos limites éticos e provoca sensações que não queremos sentir. Ainda mais quando ganha forma pelo amar, pelo afeto, desejo, prazer e ternura.
A prosa de Jeftanovic é voraz, trágica e lírica, sua naturalidade encanta e constrange. Sem meio termos, oscila entre repulsa e fascínio, e perdura o desconfortável. O infamiliar*.
*No texto da quarta capa, é citado unheimlich (alemão; tradução literal: repugnante), conceito desenvolvido por Freud, a partir do conto O homem da areia (E. T. A. Hoffmann), que transmite a ideia de quando “estamos diante de algo profundamente perturbador, todavia estranhamente familiar.” Em português, o termo corresponde ao “inquietante”, “estranho familiar” e “infamiliar”, como na nova edição do livro publicado pela editora Autêntica: O infamiliar [Das Unheimliche] – Edição comemorativa bilíngue (1919-2019).
A língua dentro da boca podia preservar o sabor que está a ponto de se extinguir. Esfregava os nós dos dedos até arrancar um pedaço de pele, que ficava girando feito uma biruta; a verdade é que eu não sangrava pelo lugar onde habia me ferido.
Primogênito; Andrea Jeftanovic
A todo momento, temos a impressão de que tudo que nos é narrado deveria permanecer oculto, mas vem à tona. Como se fosse algo proibido e no exato instante em que as palavras nos são dadas, deixamos de ser leitores e nos tornamos cúmplices.
A falsa inocência do título da coletânea é desmontada no primeiro conto e nos revela, logo de início, a profundidade entre temores e perturbações que leremos a seguir.