Categoria: Desgraçamento Mental ||| por Adriana Cecchi
A ponta do lápis quebrou
Nem a borracha pode apagar
O vinco que o grafite deixou
Rasguei a folha ao meio e a amassei
E para longe o sulfite rabiscado eu arremessei
Descartável
Girei o registro do chuveiro
A água quente caía durante o banho
E deixava uma nuvem branca no banheiro
Passou por todo meu corpo cheio de sabão
Escorrendo pelo ralo sem mais necessidade pelo vão
Descartável
O cheiro de azedo subiu e empesteou o lugar
Deixaram aberta a tampa da panela de feijão
Tão ruim que até faltou o ar
Minha mãe diria que é pecado perder comida assim
Mas não há nada mais que esse feijão possa fazer por mim
Descartável
Ela disse que me amava com uma lágrima no rosto
Dei um passo pra trás e, por tudo que é mais sagrado,
Respondi-lhe que não poderia assumir esse posto
Fechou os olhos e deu meia volta
Vi se afastar até perdê-la de vista, mas toda noite ao deitar
É só ela quem eu penso em abraçar.
Adriana Cecchi
Eu não sei o que é isso, doutor.
Será que vou mesmo partir sem entender?
Infelizmente não tenho como precisar quando tudo começou.
Isso que me aperta o peito. Que me pulsa na cabeça. Que cora o rosto.
Só me dei conta da seriedade ontem, pois acordei no meio da noite aos calafrios.
Coisa boa não pode ser, de fato.
Pode dizer, doutor. Vai.
As pessoas reparam, as pessoas comentam.
Parece quem todos percebem.
Já ouvi história de gente que se matou logo após os sintomas.
Sabe, os vizinhos costumam falar de gente que vive avoada.
De repente alguém começa a rir à toa. Depois surta. Logo enlouquece.
Eu já vi. Sei como é. Até de corda no pescoço me contaram, meu deus.
Tem nome essa doença, esse cão dos infernos.
Será contagioso? Pela água?
Pelo ar! Só pode!
Mas doutor, não enrole.
Me diga logo, eu aguento a verdade.
Quanto tempo ainda me resta?
Adriana Cecchi
Coluna de autores convidados, texto por Stephanie Roque
Gaspar caminhava com os passos lentos, envergonhados, sem saber se fazia o correto. Estava num lugar estranho e repleto de pessoas desconhecidas, e o medo de que estas o vissem era quase maior do que o prazer de finalmente estar ali. Tantas mesas, tantas estantes, tantas pessoas, tanto silêncio!
Respirou fundo e achou uma cadeira vaga. Mesmo sendo de madeira, parecia o móvel mais confortável em que Gaspar havia sentado em anos. Pensou em toda a luta pela qual ele passara. O ano inteiro de batalhas, com conquistas e derrotas. Pensou em sua esposa, que o desencorajara tantas vezes. Isso é coisa pra gente nova, Gaspar, você já tá véio. Pensou em sua mãe, que estava já tão longe, mas que sentiria um orgulho imenso dele. Pensou em seus filhos, em seus colegas de trabalho, em seus amigos de infância. O curto espaço de tempo em que ali ficou, relembrou o que parecia ser sua vida inteira. Não iria desistir.
Levantou-se, deixou sobre a cadeira sua humilde mochila, encaminhou-se para um grande balcão onde atrás estava uma mocinha tão nova que poderia ser sua filha. Por alguns minutos, ela não o viu. Quando levantou os olhos do livro que lia, sorriu pedindo desculpas.
– Em que posso ajudá-lo? – perguntou enquanto mascava seu chiclete.
Suas mãos tremiam. Mal sabia o que dizer.
Retirou do bolso o papelzinho amassado onde escrevera o nome do autor e pôs sobre o balcão.
– A senhorita tem, assim, por um acaso, um livro desse moço?
No papel, com a letra torta e incerta, o nome de um poeta. A ortografia estava incorreta, mas era fácil saber qual era o autor. Ela informou a Gaspar que ali tinham muitos livros dele, principalmente na sessão D.
Aquelas estantes ali, à direita. A senhorita pode pegar um pra mim? Bom, senhor, eu não posso sair do balcão. Ele abaixou os olhos e sorriu. É fácil, eu consigo.
Na sessão D, eram tantos livros que ele não sabia por onde começar. Jovens escolhiam os seus e saíam. Ele não entendia todas as letras. Confundia os autores com os títulos, os nomes, as sílabas.
– Senhor, eu saí do balcão correndo. Um rapaz devolveu.
E lá estava. Uma capa verde, velha e gasta. O nome em letras prateadas.
Agradeceu emocionado e voltou para sua cadeira. Sentou-se como um súdito, abriu o livro e leu a primeira palavra. A segunda. A terceira. Formou a primeira frase com dificuldade. A segunda, um pouco mais fácil. E chorando, releu o primeiro parágrafo tentando entender sobre o que dizia. E releu novamente. Todas as palavras do mundo estavam ali, e depois de 58 anos ele iria entendê-las. Chorou.
Da pequena mochila, retirou uma folha de papel e um lápis. As lágrimas de felicidade molharam um pouco a folha e emocionaram sua vizinha de mesa.
Com a ponta do lápis, começou devagar:
Eu não sabia como escreve essa carta, flor. Agora já sei. Eu fui pra escola aprende a ler e a escreve mesmo você não achando bom, mas agora eu aprendi. Posso erra em algumas coisa mais não tem importancia, né? Todo mundo erra pelo menos um pouco. Daqui a pouco vai fica madrugadinha e vou coloca essa carta de baixo do teu travesseiro. Era só pra você saber que minha primeira carta foi é pra você, flor. Que eu amo você demais, tá? Assim a gente pode conta pra nossos neto que eu aprendi a ler e a escreve só pra te fazer uma cartinha de amor, flor. Do teu nego, Gaspar.
Secou as lágrimas sobre a folha e a mesa, dobrou a carta, colocou em um envelope amarelado e escreveu com a letra trêmula “pra Maitê”. Salvou-a em sua mochila, junto com seu lápis. Repousou o livro sobre a mesa, levantou-se como um rei de seu trono de madeira, e sorriu. Agora era como um daqueles desconhecidos. Poderia sentar em qualquer um daqueles tronos.
Era dono daquele lugar.
Stephanie Roque